Recém-lançado pela Netflix, o documentário Assassinato em Mônaco é a releitura do cineasta Hodges Usry sobre a morte de Edmond J. Safra em 3 de dezembro de 1999 — pouco depois de o lendário banqueiro e filantropo ter vendido a participação de suas duas instituições financeiras ao HSBC por US$ 10,3 bilhões em cash, um marco histórico na época.
Portador de Parkinson, Edmond morreu aos 67 anos, asfixiado ao lado de Vivian Torrente, uma de suas enfermeiras, no incêndio da cobertura da La Leopolda, mansão que mantinha no principado europeu. A sucessão de erros impensáveis que ocorreram nas três horas entre o começo do incêndio (por volta das 4:30 da manhã) até a polícia, os bombeiros e o chefe de segurança chegarem levantou todos os tipos de suspeita. Edmond foi encontrado morto sentado numa poltrona e Vivian caída no chão ao seu lado.
Como, no pedaço de terra mais seguro do mundo, oásis dos bilionários, um descuido desses pode ocorrer? Tentando responder a esta pergunta, o assassinato chacoalhou a mídia internacional, ganhando espaço em programas de TV e reportagens investigativas que contorceram a história de todos os lados, criando versões e conspirações mirabolantes.
Alguns apontavam para a máfia russa, depois de Safra ter entregue ao FBI lavagens de dinheiro que passaram pelo seu banco. Houve também quem acreditasse piamente que o assassinato fora encomendado por sua esposa, Lily Safra, que estava na mansão na noite do crime e foi resgatada pela janela.
Entre os que sustentavam esta versão figuravam o (já falecido) colunista da alta sociedade Dominick Dunne, autor de um texto de nove páginas na revista Vanity Fair; os irmãos de Edmond, Joseph e Moïse, e a repórter investigativa Isabel Vincent, do The New York Post, que chegou a se instalar no Rio de Janeiro para vasculhar a vida da viúva.
O acusado foi o americano Ted Maher, um dos oito enfermeiros particulares que se revezavam para cuidar de Edmond em Mônaco. Maher deixou a mulher e três filhos em Nova York para ganhar US$ 600 por dia, além de todo o custo de vida pago.
A versão oficial sustenta que a chefe da enfermagem, Sonia Herkrath, não apreciava o comportamento de Maher. Sentindo-se ameaçado, ele bolou uma cena que, em sua imaginação, o tornaria herói: em uma noite, Maher desligou as câmeras de segurança da mansão, cortou-se com uma faca no braço e em uma parte do abdômen que (como enfermeiro) ele sabia que não atingiria um órgão vital, e ateou fogo em um cesto de lixo para despertar o alarme de incêndio.
A ideia era dizer a Edmond que havia invasores mascarados na casa (um grande medo do banqueiro), e que ele, “mesmo atacado a facadas pelos invasores”, salvaria o patrão.
Mas o final foi diferente: Edmond se trancou no banheiro com Vivian, uma filipina mãe de dois filhos. À medida que o fogo se alastrava pela cobertura da La Leopolda, o banqueiro foi orientado, pelo telefone interno, a sair dali. Mas ele se recusou.
Em 2002, Maher foi julgado em um tribunal pequeno de Mônaco, onde repórteres se acotovelavam, incluindo a Reuters e a Associated Press, que espalharam a notícia em jornais do mundo inteiro. Mesmo antes da era das mídias sociais, o evento gerava mais de 400 clippings diários. Maher foi condenado a dez anos de prisão.
É aqui que o documentário da Netflix traz novidades. Usry entrevistou muitos personagens envolvidos no caso, incluindo advogados, a enfermeira-chefe, a repórter do jornal nova-iorquino e o próprio Maher, hoje com 67 anos, e que está de volta nos Estados Unidos.
Lily Safra faleceu em 2022, aos 87 anos. Ela não falava com a imprensa e, nos últimos anos de vida, dedicou-se à fundação filantrópica que leva o nome do marido.
O trailer do documentário faz o espectador acreditar que o enfermeiro é inocente, com recortes precisos das diversas entrevistas, incluindo um caricato criminoso italiano com quem o americano compartilhou a cela. Aliás, foi ele o responsável por orquestrar a fuga de Maher da prisão, liberdade que durou poucos dias até ele ser capturado.
Mas o que de fato aconteceu com o Ted Maher desde então? Ele realmente serviu como bode expiatório, como sustentam quem nunca acreditou na versão oficial?
Antes de dar o spoiler, vamos relembrar quem foi Edmond Safra.
Nascido em Beirute, de família síria judaica originária de Alepo, ele era tataraneto de um banqueiro renomado nos idos do Império Otomano. Seus pais tiveram quatro filhos e quatro filhas.
O pai era dono de um pequeno banco e a mãe morreu cedo. Edmond tirava notas péssimas na escola e parou de estudar aos 14 anos. Mas, em 1947, ao completar 15 anos, seu pai o enviou para Milão para captar clientes, época em que a Europa enfrentava o pós-guerra. Sua jornada começou ali.
Edmond fundou quatro instituições financeiras em três continentes: o Republic Bank of New York, o Trade Development Bank (TDB), em Genebra; o Safra Republic Holdings, em Luxemburgo; e o Banco Safra, em São Paulo. O último passou a ser liderado por seus irmãos mais novos, Joseph e Moïse.
Avesso a entrevistas e depoimentos, ele vivia entre o Oriente Médio, a Europa e a América Latina e doava dinheiro com a mesma voracidade com que ganhava. Falava sete idiomas, casou-se com Lily Safra aos 43 anos, mas não teve filhos. Ou melhor, dizia que seus bancos eram seus filhos. Por anos, morou na cobertura do Republic Bank, na esquina da Rua 40 com a Quinta Avenida, em Manhattan.
O Banco Safra é privado, mas os bancos de Edmond, na Suíça e em Nova York, eram de capital aberto. Edmond possuía 30%. Mas o restante das ações estava em poder do público; qualquer um podia comprar ações.
Segundo Daniel Gross, autor da biografia autorizada A Jornada de um Banqueiro, apesar de seu banco ter capital aberto, Edmond o via como um negócio de família, relutando em selecionar CEOs e em transferir o controle dos bancos. Ele trabalhava o dia todo: de manhã, estava no telefone com a Ásia, depois com a Europa e, à noite, com os Estados Unidos.
Mas, no final dos anos 1990, quando foi diagnosticado com Parkinson, ele anunciou seu afastamento, esperando que seus irmãos assumissem alguma posição, especialmente Joseph, seu grande conselheiro. No entanto, eles não chegaram a um acordo, levando Edmond a tomar a dolorosa decisão de vender os bancos para não se preocupar com a sucessão.
Em 1999, o banqueiro vendeu todos os seus bancos em dinheiro para não ter ações de ninguém.
O documentário não conta esta história, limitando-se ao assassinato. E a surpresa vem no final. Antes mesmo de o enfermeiro voltar para os Estados Unidos, sua esposa se divorciou dele.
Ao recomeçar sua vida no país, Maher mudou de nome para Jon Green. Ele casou mais três vezes, cometeu uma série de delitos, sendo que o último culminou em mais uma sentença, sob a qual ele está encarcerado no estado do Novo México até 2031: ele mandou matar sua última esposa, crime que acabou não acontecendo.
Esta cascata de mentiras fez o diretor Usry despertar e, decepcionado, visitar o enfermeiro na cadeia: “Você mentiu para mim este tempo todo?” Maher, ou melhor, Green, continua a insistir que não. Mas isso também parece ser uma grande mentira.


