Certa feita, o pianista mineiro Nelson Freire (1944-2021) foi chamado de “o maior segredo do mundo erudito”. Isso porque Nelson, embora figure no panteão dos grandes pianistas do século XX, era famoso pela aversão a estúdios de gravação e salas de concerto.
Pois o cantor e compositor Mateus Aleluia é o maior e mais belo segredo da música afro-baiana. A vantagem é que esse senhor de 83 anos, nascido em Cachoeira (no Recôncavo Baiano), tem produzido trabalhos de ótima qualidade, que fazem com que sua obra ganhe notoriedade e admiração.
O mais recente, Baía Profunda, lançado há pouco mais de um mês na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, é uma ideia que está muito além da música. É a concepção – uma teoria do próprio Aleluia – de que a Baía de Todos os Santos (e não a Bahia, o estado) abarca e banha as culturas dos povos da Bahia, da África e da Europa.
“Baía profunda não é a Bahia com h, Bahia estado que foi designada pelos homens. É a de Todos os Santos, que reforça a confluência de vários povos na criação de um ambiente de encontro, produção, pensamento e produções artísticas,” declarou Aleluia ao anunciar o projeto. “Uma terra que um dia tinha habitantes e que depois esses habitantes se encontraram com habitantes de outras latitudes, e isso se transformou em quê? Numa confluência de pessoas de vários pontos do mundo.”
Cachoeira, a cidade natal de Aleluia, foi eleita patrimônio cultural do País e sedia a Irmandade da Boa Morte, uma confraria de mulheres que unem as tradições católicas e africanas.
O objetivo inicial dessas religiosas, que no início era formada por pretas libertas, era arrecadar fundos para alforriar escravos. A congregação organiza uma pequena celebração, que ocorre todo mês de agosto, na qual são celebradas a ancestralidade, a fé e a libertação dos escravos. E ali, as procissões e as missas se casam com o samba de roda e a capoeira.
Os Tincoãs, trio que em sua formação mais bem-sucedida contou com Aleluia, Dadinho e Heraldo, é produto do sincretismo típico de Cachoeira. A princípio, era um grupo que, no início dos anos 1960, cantava boleros (a maior fonte de inspiração era o Trio Irakitan).
A partir da entrada de Aleluia, em 1963, passaram a compor sob inspiração do samba de roda e cantos afro-brasileiros. Nem sempre foram entendidos por público e diretores de gravadoras.
Em 1973, os Tincoãs foram recebidos com desconfiança por Milton Miranda, diretor artístico da gravadora EMI, que não acreditou no sucesso do grupo. Adelzon Alves, produtor do trio, lançou então mão de um estratagema.
Como Miranda tinha dificuldade em aceitar um grupo “com som de candombré,” Adelzon mostrou discos de soul para o executivo, a fim de ilustrar as mudanças pelas quais a música estava passando.
Deu certo: Tincoãs, o disco, é uma pequena obra-prima do cancioneiro negro brasileiro, com adaptações de temas de candomblé e temas criados por Aleluia, Dadinho e Heraldo.
Dali saem Deixa a Gira Girar, Saudação aos Orixás e Iansã Mãe Virgem, entre outros temas que dariam ao grupo a fama que possuem até hoje.
Em 1975, Heraldo morreu e foi substituído, a princípio, por Morais. Depois, esse deu lugar a Badu, que gravou outro belo LP do trio – Os Tincoãs, de 1977, que traz Cordeiro de Nanã, que João Gilberto gravaria em Brasil, disco de 1981. Em 1983, contudo, Aleluia e Dadinho mudaram-se para Angola, enquanto Badu ficou no Brasil. A dupla gravou um disco (Mateus e Dadinho, de 1986) e Aleluia assumiu um cargo no governo local. “Minha missão era identificar a influência brasileira na cultura angolana e pesquisar sobre candomblé e quimbanda.”
Dadinho morreu em 2000 e Aleluia retornou ao Brasil – para Salvador – três anos depois da passagem do amigo. Aos poucos, reconquistou um lugar de destaque que sempre foi seu de direito. Pouco depois da sua chegada, uniu-se a Carlinhos Brown na composição Maimbê Dandá, que Daniela Mercury incluiu no repertório de Carnaval Eletrônico, seu disco de 2004.
Seu Mateus, como é chamado, é uma fonte de inspiração infinita. “A Orquestra Afro-Sinfônica, de uma certa forma, deve sua criação a Mateus Aleluia. Ela nasceu em meio às gravações de Cinco Sentidos, disco que ele lançou em 2010,” diz Ubiratan Marques, maestro do combo que une o universo erudito e afro-brasileiros.
Ubiratan estava no palco da Concha Acústica Castro Alves na noite de estreia de Baía Profunda. Ele comandou o tema de abertura, Hino do Baía Profunda, que traz como destaque a percussão de matriz africana ao lado de contrabaixos que parecem criados para tocar sinfonias de Ludwig von Beethoven (1770-1827). Aleluia entra em seguida e desfila o melhor de seu repertório, com destaque para as canções de Cinco Sentidos, Fogueira Doce (2017) e Olorum (2020).
Aleluia é um intérprete de voz profunda e um cancioneiro que alterna canções afro-brasileiras, sambas de roda e melodias dolentes. A lírica de suas composições, em sua maioria, é voltada para o universo das religiões afro no Brasil, mas entre uma reza ou outra ele se permite cantar fatos inusitados. Caso de Quem Guiou a Cega?, cuja origem revela de forma descontraída.
Foi uma estratégia de defesa de Cosme de Farias (1875-1972), um rábula que entrou para a história por defender na Justiça os pobres e os analfabetos. A história da música reconta uma desses feitos, quando ele salvou um rapaz da acusação injusta de estupro.
Seu Mateus reserva os momentos finais de sua performance para três pedradas de seu repertório: a já citada Cordeiro de Nanã (com a presença de Carlinhos Brown e Margareth Menezes no coro, como se entoando uma oração), Fogueira Doce e Deixa a Gira Girar, dos seus tempos de Tincoãs. O trio, aliás, está presente em outras duas canções do roteiro: Lamento às Águas e Oxossi te Chama, clássicos da devoção aos orixás.
Maracatu do Congo, parceria de Aleluia e Ubiratan Marques, fechou o espetáculo da Castro Alves. A esperança é que Baía Profunda percorra os palcos do Brasil e do mundo no ano que vem. E que o “segredo” Mateus seja cada vez mais desvendado pelo público. Atotô Babá, Mateus Aleluia.
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